A Rainha da Tempestade

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Wednesday, April 19, 2006

Am-Amheb-Houit

O som de um prato a bater na mesa arranca-me do meu torpor. “Amheb, aqui está a sua comida.” Reconheço a voz doce da rapariga que me está a servir, pois quando aqui entrei ela foi simpática, e falou comigo. Lembro-me agora onde estou e reconheço que é indigno da minha parte ter adormecido em cima da mesa de uma taberna. Preciso acordar rapidamente: preciso de me comportar dignamente. Já não estou nas montanhas, já não sou um aprendiz no Templo dos Huit. Agora estou na grande cidade, e aqui não sou aprendiz: sou o enviado da minha tribo, o braço cheio da força dos Huit, um legítimo contendor pela mão da Princesa, um dos cinco pretendentes ao trono de Imoham! "Am-Amheb-Houit!", respondo-lhe, enquanto respiro fundo para expulsar a moleza do meu corpo, e surpreendido com o significado deste novo nome, que pela primeira vez utilizo, repito-o em voz alta, de forma a compreender todo o sentido deste titulo, "Am-Amheb-Houit!". Mais surprendido fico ao reparar no olhar que me fixa, enquanto segura a malga cheia de comida que está pousada na minha mesa. Os seus olhos são de um cinzento invulgar, e o seu cabelo negro e escorrido aumentam o impacto daquele olhar perfurante. Sem palavras esboça um sorriso e retira-se, para regressar com uma caneca cheia de sumo de frutas fermentado. "Am-Amheb-Houit! Se já te chamas mestre, então já podes beber, pois a bebida apenas é proibida ao aprendiz.", "Obrigado", agradeço, enquanto a vejo de novo desaparecer para a cozinha da taberna.

Admiro o espaço que me rodeia. É uma casa ampla, onde a luz que entra pelas janelas reflete o amarelo das paredes decoradas. Existem cerca de oito mesas distribuidas pela sala, intercaladas pelos pilares que suportam o andar superior. À minha frente existe um balcão onde se enche as malgas, se distribui o pão e as bebidas, e que está contiguo a uma cozinha escondida. A parede que divide a sala e a cozinha estão duas lareiras cheias de cinzas. Além da minha, só outra mesa tem dois ocupantes, dois homens, que conversam entusiasmados, gesticulando bastante, fazendo medindo animais imaginários, possivelmente relembrando alguma caçada. Também comem e também bebem.

A empregada regressa com pão e carne fumada. "É o que temos de momento. Ontem, com a festa, as prateleiras ficaram vazias, e hoje, como é dia de descanço, não se repos o que se consumiu." Novamente agradeço, e acrescento "É a melhor refeição que comi de há muito tempo a esta parte". De novo a rapariga sorri, e de novo e me sinto baralhado com o conforto que aquele sorriso me transmite. "Eu imagino", responde, "que muitas noites sozinho ao relento nas montanhas lhe tenham aguçado os apetites." E acrescenta, antes de se dirigir à outra mesa para levando outras duas doses de pão e carne, "Aproveita os momentos de descanço. Dentro em pouco alguém chegará para te conduzir à presença do Rei, mas enquanto o emissário real não chega podes retemperar forças sem te preocupares com posturas ou aparências. Hoje é dia de descanço, e por isso hoje muito é permitido na Cidade. Se quiseres adormecer esticado no banco, podes faze-lo, se preferires adormecer outra vez com a cabeça encostada à mesa, é igualmente permitido."

Termino a refeição, de novo o torpor invade o meu corpo. Sem constrangimentos empurro a tigela vazia, sacudo as migalhas de pão de cima da mesa e com os braços faço a almofada onde encosto a cabeça. O sono regressa rápido, enquanto repito mentalmente a palavra que será utilizada sempre que, nesta cidade, alguém me interpelar: "Am-Amheb-Houit! Am-Amheb-Houit! Am-Amheb-Houit..."

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Friday, April 07, 2006

Arautos da tempestade

Fecho os olhos, e sinto o relâmpago que procede o trovão. Juntos correm o vale anunciando o inicio da tempestade. O ar em redor torna-se mais fluido, mais frio e mais húmido. Em redor do caminho de terra batida toda a vegetação, de as folhas amareladas pelo inicio do outono, se curva ao vento que se levanta e cresce, obedecendo aos gritos dos arautos, dançando em compasso com o canto que se ouve. Tal como os homens que se encontram refugiados na citadela, por todo o vale as bestas procuram o seu abrigo. O vento carrega o som de melodias antigas, repletas de poder conjurado pelos antigos sábios, que são entoadas desde que o meu povo é povo, mesmo nos tempos em que que Imoham ainda não era Imoham. Árvores, folhas, ervas, animais selvagens, aves e vermes conhecem-no de cor, e entoam-no quando o vento passa, e todos os seres viventes prestam homenagem à Rainha que está preste a chegar e a reclamar a sua soberania. Eu também.

Respiro o ar, procurando os perfumes que havia descoberto quando, pela primeira vez, entrei no vale. Era primavera, e os campos apresentavam-se verdes e vicosos, polvilhados com o amarelo e violeta das flores que aqui crescem. Nessa altura o meu mentor e mestre Am-Houit tinha me conduzido pelos trilhos das montanhas, e assim assegurar que eu conheceria o caminho para a citadela. Tinha-mos alcançado esta colina quando retirou o seu colar de runas, colocou-o ao meu pescoço, e de olhos cerrados, com a mão esquerda sobre o peito e a mão direita sobre o meu coração conjurou um cântico de protecção. Depois, sem mais palavras, despediu-se num abraço robusto e partiu mergulhando nas montanhas. Fiquei sozinho desde então, lutando e sobrevivendo; uma ultima lição antes de enfrentar os desafios que me estão reservados na Cidade de Imoham.

Abro os olhos, e vejo o vento que segurando as folhas caídas, as eleva do chão, e lhes permite observarem novamente o mundo do alto. As primeiras gotas atingem a minha capa verde, tão verde como as ervas que cobrem o chão. Dentro em pouco a Rainha chegará plena e exuberante, carregada de poder e beleza, e cheia de raiva, de fúria para com os imprudentes e arrogantes que não se acautelam devidamente à sua passagem.

Outro relâmpago fende os céus. Espalha-se pela terra num estuário de energia. Tão perto se encontra que um arrepio de energia percorre as crinas brancas do meu cavalo. Desfaço o feitiço que me prende àquela paisagem. Meço o caminho de terra batida que corta o verde, amarelo e violeta dos campos até mergulhar num punhado de árvores, e finalmente ressurgir perto da entrada do castelo. Calculo a distância, e tento adivinhar quanto tempo levarei até atingir os seus portões. O grito rouco e longo do trovão chega finalmente, e atinge-me pelas costas, e faz-me ressoar o seu canto. A minha montada responde-lhe, primeiro com com um relincho desafiador, e depois com o som do seu galope.

Os seus cascos ganham ritmo, e marcam o tempo da canção que o vento canta. Cada vez mais rápido, cada vez mais alto, cada vez mais forte, até se provarem mais rapidos, mais sonoros, e mais velozes que o próprio vento. A Rainha estará certamente feliz, pois mais um arauto corre veloz pelo campo verde, anunciando a sua chegada.

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